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domingo, 26 de setembro de 2010

Todo Poder tem Limite

editorial da FOLHA de S. Paulo, do dia 26/09






Todo poder tem limite

Os altos índices de aprovação popular do presidente Lula não são fortuitos. Refletem o ambiente internacional favorável aos países em desenvolvimento, apesar da crise que atinge o mundo desenvolvido. Refletem,em especial, os acertos do atual chefe do Estado.  Lula teve o discernimento de manter a política econômica sensata de seu antecessor. Seu governo conduziu à retomada do crescimento e ampliou uma antes incipiente política de transferências de renda aos estratos sociais mais carentes. A desigualdade social, ainda imensa, começa a se reduzir. Ninguém lhe contesta seriamente esses méritos.

Nem por isso seu governo pode julgar-se acima de críticas. O direito de inquirir,duvidar e divergir da autoridade pública é o cerne da democracia, que não se resume apenas à preponderância da vontade da maioria. Vai longe, aliás, o tempo em que não se respeitavam maiorias no Brasil. As eleições são livres e diretas, as apurações, confiáveis -e ninguém questiona que o vencedor toma posse e governa. Se existe risco à vista, é de enfraquecimento do sistema de freios e contrapesos que protege as liberdades públicas e o direito ao dissenso quando se formam ondas eleitorais avassaladoras, ainda que passageiras. 


Nesses períodos, é a imprensa independente quem emite o primeiro alarme, não sendo outro o motivo do nervosismo presidencial em relação a jornais e revistas nesta altura da campanha eleitoral. Pois foi a imprensa quem revelou ao país que uma agência da Receita Federal plantada no berço político do PT, no ABC paulista, fora convertida em órgão de espionagem clandestina contra adversários. Foi a imprensa quem mostrou que o principal gabinete do governo, a assessoria imediata de Lula e de sua candidata Dilma Rousseff, estava minado por espantosa infiltração de interesses particulares. É de calcular o grau de desleixo para com o dinheiro e os direitos do contribuinte ao longo da vasta extensão do Estado federal.


Esta Folha procura manter uma orientação de independência, pluralidade e apartidarismo editoriais, o que redunda em questionamentos incisivos durante períodos de polarização eleitoral. Quem acompanha a trajetória do jornal sabe o quanto essa mesma orientação foi incômoda ao governo tucano. Basta lembrar que Fernando Henrique Cardoso,na entrevista em que se despediu da Presidência, acusou a Folha de haver tentado insuflar seu impeachment.


Lula e a candidata oficial têm-se limitado até aqui a vituperar a imprensa, exercendo seu próprio direito à livre expressão, embora em termos incompatíveis com a serenidade requerida no exercício do cargo que pretendem intercambiar. Fiquem ambos advertidos, porém, de que tais bravatas somente redobram a confiança na utilidade pública do jornalismo livre. Fiquem advertidos de que tentativas de controle da imprensa serão repudiadas -e qualquer governo terá de violar cláusulas pétreas da Constituição na aventura temerária de implantá-lo.

domingo, 5 de setembro de 2010

Bem-Vindo a um Lugar de Mentira

* matéria publicada na Folha2 de 05/09/10


O céu alaranjado clareava o horizonte, e suas cores contrastavam perfeitamente com o cenário desolado, o oceano de areia que seguia infinitamente. O abafamento sufocante daquela região parecia fazer todo o resto pairar no ar, quase como se o próprio tempo ficasse em suspensão, e o relógio demorava a passar. Ao longe, uma imagem fantasmagórica surgia, e quem observasse aquele momento poderia imaginar que estava em alguma espécie de transe ou miragem: ali estava um homem com uma câmera.

A região descrita, um deserto morto e inabitável, famoso pelo nome de ‘empty quarter’ - literalmente ‘quarteirão vazio’, em inglês - estende-se por mil quilômetros dentro dos Emirados Árabes, e é um dos lugares mais remotos do mundo. O homem com a câmera não é uma ilusão, seu nome é Guilherme Peraro, cineasta londrinense que participou da produção e direção de vários filmes premiados, entre eles Haruo Ohara, vencedor de vários prêmios no festival de Gramado de 2010.  “Desde quando eu pisei pela primeira vez no oriente médio eu pensei em produzir um documentário que conseguisse retratar a sensação de viver em um lugar como aquele” comenta.

Peraro é formado em Engenharia e passou o período de alguns anos trabalhando em uma empresa de prospecção de petróleo no Oriente Médio, mas nunca abandonou sua paixão pela sétima arte. “desde quando eu era pequeno sonhava em fazer filmes, assistia tudo que passava na TV e trocava fitas VHS com meus amigos. Acho que cinema tem mais a ver com paixão do que com qualquer outra coisa” diz Guilherme, que transformou sua paixão em algo concreto ao ser um dos fundadores da Mostra Cinema de Londrina e conciliar sua carreira de engenheiro com uma produção cinematográfica respeitável “acho que é para fazer cinema é preciso dar o primeiro passo. Sua vontade de fazer um filme precisa ser maior do que qualquer outra coisa. No fim, sempre é muito gratificante.”

As filmagens do seu novo documentário experimental, que possui o nome provisório de Marhaba – ‘bem-vindo’ em árabe – foram feitas durante as viagens do engenheiro/cineasta e duraram quatro anos para serem compilada “quando eu tinha um intervalo ou um dia de folga no trabalho, eu aproveitava para fazer filmagens das coisas que me chamavam a atenção” conta Guilherme. Ele, que viajou com sua lente por entre as luxuosas rodovias e gigantescos edifícios recém-construídos de Abu Dhabi, passando por entre as ruelas sujas e feiras a céu aberto – chamadas de Souk – dentro do Paquistão, e relata uma visão muito peculiar: a do estrangeiro perdido em uma terra que não parece ter uma identidade formada “uma sensação muito forte que eu tive fazendo esse filme era de que eu estava morando em um lugar de mentira, porque é uma região em que a maioria das pessoas não estão lá definitivamente. Na verdade, [os Emirados Árabes] são países de passagem” completa.

O objetivo de Peraro com este documentário experimental - que ainda encontra-se em fase de montagem - é tentar demonstrar os seus sentimentos das viagens através de planos de câmera que dão a impressão de distanciamento; os olhares se esgueiram pelas ruas, observam de longe essa cultura nos quais os caminhos novos e antigos se cruzam e entrelaçam – uma cultura onde a forte tradição se debate frente a frente com tecnologia, e que a riqueza  é proporcionada pelo ouro negro que jorra nas entranhas dessa peculiar terra seca e áspera – tudo isto pontuado com a trilha melódica do seu amigo e músico Kamal Mussalam, que é cidadão da Jordânia e toca jazz com toques da cultura arábica. Nada mais adequado.

Depois do término deste projeto, o cineasta londrinense não pensa em descansar sua câmera por muito tempo “quando eu voltar para os Emirados, um sonho louco que eu tenho é o de fazer igual o aventureiro Wilfred Thesiger, e documentar a travessia do ‘empty quarter’ com a ajuda dos nômades. Aquele lugar é fascinante.” Apesar de o aventureiro etíope escrever sobre essa região como sendo uma ‘terra amarga, desidratada, que não conhece nada de delicadeza ou facilidade’, as imagens e depoimentos inspiradores do cineasta londrinense nos levam a pensar que, dentro do vazio do deserto, existe ainda muita beleza para ser revelada.