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domingo, 5 de setembro de 2010

Bem-Vindo a um Lugar de Mentira

* matéria publicada na Folha2 de 05/09/10


O céu alaranjado clareava o horizonte, e suas cores contrastavam perfeitamente com o cenário desolado, o oceano de areia que seguia infinitamente. O abafamento sufocante daquela região parecia fazer todo o resto pairar no ar, quase como se o próprio tempo ficasse em suspensão, e o relógio demorava a passar. Ao longe, uma imagem fantasmagórica surgia, e quem observasse aquele momento poderia imaginar que estava em alguma espécie de transe ou miragem: ali estava um homem com uma câmera.

A região descrita, um deserto morto e inabitável, famoso pelo nome de ‘empty quarter’ - literalmente ‘quarteirão vazio’, em inglês - estende-se por mil quilômetros dentro dos Emirados Árabes, e é um dos lugares mais remotos do mundo. O homem com a câmera não é uma ilusão, seu nome é Guilherme Peraro, cineasta londrinense que participou da produção e direção de vários filmes premiados, entre eles Haruo Ohara, vencedor de vários prêmios no festival de Gramado de 2010.  “Desde quando eu pisei pela primeira vez no oriente médio eu pensei em produzir um documentário que conseguisse retratar a sensação de viver em um lugar como aquele” comenta.

Peraro é formado em Engenharia e passou o período de alguns anos trabalhando em uma empresa de prospecção de petróleo no Oriente Médio, mas nunca abandonou sua paixão pela sétima arte. “desde quando eu era pequeno sonhava em fazer filmes, assistia tudo que passava na TV e trocava fitas VHS com meus amigos. Acho que cinema tem mais a ver com paixão do que com qualquer outra coisa” diz Guilherme, que transformou sua paixão em algo concreto ao ser um dos fundadores da Mostra Cinema de Londrina e conciliar sua carreira de engenheiro com uma produção cinematográfica respeitável “acho que é para fazer cinema é preciso dar o primeiro passo. Sua vontade de fazer um filme precisa ser maior do que qualquer outra coisa. No fim, sempre é muito gratificante.”

As filmagens do seu novo documentário experimental, que possui o nome provisório de Marhaba – ‘bem-vindo’ em árabe – foram feitas durante as viagens do engenheiro/cineasta e duraram quatro anos para serem compilada “quando eu tinha um intervalo ou um dia de folga no trabalho, eu aproveitava para fazer filmagens das coisas que me chamavam a atenção” conta Guilherme. Ele, que viajou com sua lente por entre as luxuosas rodovias e gigantescos edifícios recém-construídos de Abu Dhabi, passando por entre as ruelas sujas e feiras a céu aberto – chamadas de Souk – dentro do Paquistão, e relata uma visão muito peculiar: a do estrangeiro perdido em uma terra que não parece ter uma identidade formada “uma sensação muito forte que eu tive fazendo esse filme era de que eu estava morando em um lugar de mentira, porque é uma região em que a maioria das pessoas não estão lá definitivamente. Na verdade, [os Emirados Árabes] são países de passagem” completa.

O objetivo de Peraro com este documentário experimental - que ainda encontra-se em fase de montagem - é tentar demonstrar os seus sentimentos das viagens através de planos de câmera que dão a impressão de distanciamento; os olhares se esgueiram pelas ruas, observam de longe essa cultura nos quais os caminhos novos e antigos se cruzam e entrelaçam – uma cultura onde a forte tradição se debate frente a frente com tecnologia, e que a riqueza  é proporcionada pelo ouro negro que jorra nas entranhas dessa peculiar terra seca e áspera – tudo isto pontuado com a trilha melódica do seu amigo e músico Kamal Mussalam, que é cidadão da Jordânia e toca jazz com toques da cultura arábica. Nada mais adequado.

Depois do término deste projeto, o cineasta londrinense não pensa em descansar sua câmera por muito tempo “quando eu voltar para os Emirados, um sonho louco que eu tenho é o de fazer igual o aventureiro Wilfred Thesiger, e documentar a travessia do ‘empty quarter’ com a ajuda dos nômades. Aquele lugar é fascinante.” Apesar de o aventureiro etíope escrever sobre essa região como sendo uma ‘terra amarga, desidratada, que não conhece nada de delicadeza ou facilidade’, as imagens e depoimentos inspiradores do cineasta londrinense nos levam a pensar que, dentro do vazio do deserto, existe ainda muita beleza para ser revelada.

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